Falar sobre algo que nunca viveu, descrever uma dor ou um sentimento sobre algo que nunca sentiu, fazer juízo de valor, dar definições do que é ou não isso ou aquilo sem a experiência sentida, literalmente, na própria pele, é o que ajuda a perpetuar o racismo estrutural, que está imiscuído em atitudes, palavras e números.
Nossa própria língua é um exemplo. Como mostra a matéria da BBC, publicada no último dia 21, em função do Dia da Consciência Negra, “em muitos casos, a associação da cor preta a algo negativo fica evidente em frases como ‘você está na minha lista negra’, ela comprou o computador no ‘mercado negro’ ou sou a ‘ovelha negra’ da família”. Mas as expressões não se limitam a essas versões mais óbvias. “Nosso idioma foi construído sob forte influência do período de escravização e muitas destas expressões seguem sendo usadas até hoje, ainda que de forma inconsciente ou não intencional. Precisamos repensar o uso de palavras e expressões que são frutos de uma construção racista”, diz o texto de introdução da cartilha lançada pela Defensoria Pública da Bahia, chamada “Expressões Racistas do Cotidiano”.
Nos números, a cruel realidade brasileira grita. Mesmo assim, como vem ajudando a mostrar a filósofa, ativista social, professora e escritora Djamila Ribeiro, muitas vezes passa despercebida e naturalizada: a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. A situação é ainda mais alarmante considerando que 54% da população brasileira é negra, o que torna o país o que tem a maior população negra fora da África. “Os antigos escravos foram marginalizados socialmente e, até hoje, colhemos os frutos desse tempo. As mulheres negras, por exemplo, após a abolição, foram destinadas ao trabalho doméstico (e hoje observamos o impressionante número de 6 milhões de mulheres empregadas domésticas negras no país, tendo a profissão só sido regulamentada em 2013)”, afirma Djamila, ganhadora do Prêmio Jabuti na categoria Ciências Humanas pelo livro “Pequeno manual antirracista”.
O cenário está também estampado nas empresas quando um levantamento recente do Vagas.com, por exemplo, com 238.636 candidatos indicou que, em cargos de nível pleno, profissionais negros representam 8,9% do total e na direção ocupam apenas 0,7% das posições.
É nesse contexto que o “lugar de fala” vem sendo defendido. Quando uma pessoa branca define o que é ou não uma atitude racista. Quando uma pessoa branca usa expressões e palavras “sem intenção”. Quando uma pessoa branca se caracteriza como não racista porque “meu pai é negro”, “tenho um amigo negro” ou “sempre brinquei assim com meus amigos”. Tudo isso está sendo dito sob a perspectiva do branco. Daquele que não sabe o que são mais de 4 séculos de escravidão ou que nunca poderão saber de fato o que é uma “libertação” feita sem nenhum tipo de preocupação acerca da inclusão dos negros na sociedade. O lugar de fala é ouvir, aprender e respeitar a perspectiva negra no debate. É entender que, ainda que não haja intenção, precisamos rever e mudar nossa forma de falar e lidar. Uma mudança estrutural leva tempo, mas para que ela aconteça de fato, precisamos começar já, desde as pequenas às grandes mudanças, desde a nossa forma de agir à nossa forma de ouvir. “Não basta só reconhecer o privilégio, precisa ter ação antirracista de fato. Ir a manifestações é uma delas, apoiar projetos importantes que visem à melhoria de vida das populações negras é importante, ler intelectuais negros, colocar na bibliografia”, sugere Djamila.
O Dia da Consciência Negra é uma oportunidade para destacar o debate, mas a mudança começa também aí. Dia de Consciência, é todo dia!
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